Cinco discos para entender o shoegaze

 

Publicado orignalmente no Newyeah em 30-5-2016

Por Carlos Viegas

A música do final dos anos 80 e início dos 90 foi dominada pelo grunge em quase todas as suas esferas. De um lado, as garagens viram nascer um surto de power trios que logo depois tomou de assalto a cena independente. De outro lado, no mais badalado mainstream, o Nirvana retirava o Michael Jackson do topo da parada da Billboard e impressionava o mundo por ser o nome mais influente e popular do momento mesmo sem produzir uma música tão comercial. À margem do barulho causado pelo movimento iniciado em Seattle, uma série de bandas vasculhava por referências ainda mais obscuras e arquitetava outro tipo de som, que viria a ser conhecido mais tarde como shoegaze.

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My Bloody Valentine: o expoente máximo do shoegaze lançou a sua obra-prima apenas seis anos após o gênero dar os seus primeiros sinais de vida.

Há indícios de que tudo tenha começado quando o Jesus and Mary Chain estreou em disco elevando o volume das guitarras, pegando pesado nos efeitos e convidando a imperfeição para dançar ao invés de limá-la da mixagem final. Conta-se, inclusive, que o termo shoegaze teria sido cunhado pela mídia quando esta observou que a banda escocesa passava boa parte dos shows olhando para o chão, mirando os próprios sapatos. O que se sabe é que os experimentos ensaiados pelo grupo foram continuados por outras bandas que surgiam e até por grupos que já vinham produzindo dentro da cena new wave, e cada parte ajudou um pouco a construir todo um gênero que só foi ser verdadeiramente reconhecido muito tempo depois, mas que até hoje influencia muita gente.

Para falar sobre os trabalhos fundamentais desse período de pavimentação, discos que até hoje permanecem como as principais enciclopédias do shoegaze, chamamos o Régis Garcia, que é fundador do selo Lovely Noise Records, idealizador do grupo The Sorry Shop e um dos maiores embaixadores brasileiros do estilo. Daqui pra baixo, é com ele.

Psychocandy – The Jesus and Mary Chain (1985)

“Se eu for puxar bem na memória, tenho a impressão de que o meu primeiro contato com o que se entende hoje por shoegaze foi o Jesus“Just Like Honey” tocava bastante na MTV e deve ter sido lá que escutei pela primeira vez as guitarras abelhudas dos irmãos Reid. Além da introdução fácil de dois acordes e da levadinha a la “Be My Baby”, do The Ronettes, todo o resto está lá: reverb, fuzz, vocais etéreos e por aí vai. Mas essa era a fachada da coisa toda. Foi só botar o disco na vitrola para levar um susto depois da primeira faixa. Nem o primeiro contato com A Place to Bury Strangers foi tão traumático. Era ruído para todo lado. Esses tempos, coloquei no carro para tocar e um camarada lembrou: “a primeira vez que ouvi isso aí, fui mexer nos cabos do som. Achei que estava estragado ou com algo errado”. Não era fácil de engolir, demorava para digerir, mas uma vez que você entendia o que estava sendo feito ali o disco se tornava primordial. E é lindo. O caos em estado bruto é essencial para compreender o shoegaze”.

Nowhere – Ride (1990)

“Esse sempre me parece essencial por ser visceral. Enquanto os outros discos aqui listados acabam pegando o mesmo caminho de paredes de guitarra e atmosferas lotadas de reverb, Nowhere segue por um caminho menos nebuloso. Talvez o Ridenão tenha sido tão tipicamente simbólico em dois quesitos: guitarras e vocais afundados. Tudo soa muito mais vivo e mais cru em Nowhere e isso definitivamente não é ruim. Além disso, as baterias estão lá, na frente, pulsando com o baixo. “Polar Bear” cresce em um loop percussivo e explode em uma levada daquelas mais soltas, mais improvisadas, menos controladas, até, finalmente, depois de uma pequena catarse, ser desconstruída novamente naquele mesmo loop do início e definhar em uma condução discreta. É um loop orgânico no qual a gente escuta o pulso e o braço firme de Laurence Colbert e isso torna Nowhere tão interessante”.

Souvlaki – Slowdive (1993)

“Há um bom tempo, li em um desses fóruns de internet um debate acalorado sobre qual seria o disco shoegaze mais importante de todos os tempos. Metade do pessoal gritava Loveless e a outra metade, Souvlaki. Cada um usava suas armas para defender (e ofender) os discos da maneira que considerava mais eficiente. Foi em um desses comentários que percebi algo que nunca tinha me saltado tanto aos olhos e ouvidos: as letras do Souvlaki são realmente muito boas dentro do contexto estético do disco. Não que isso prove ou deixe de provar algo, mas a grande obra do Slowdive tem uma poética e tanto. Tem gente que atribui ao lance complicado da separação de Rachel Goswell e Neil Halstead. Tanto faz. “Dagger”, por exemplo, é puro sofrimento. E não é só a letra, não. É uma melancolia que permeia cada acorde e arranjo letárgico do disco. Mas o mais incrível é que, ainda assim, esse é um disco com algo de otimista. Algo como uma manhã ensolarada em um inverno rigoroso”.

Whirlpool – Chapterhouse (1991)

“Dá para dizer que Whirlpool é o disco mais peculiar desta breve lista. O Chapterhouse não produziu tanto em sua curta carreira inicial e o disco de 1991 não é exatamente uma obra-prima, mas oferece uma espécie de simbiose com outros universos que todos aqueles discos mais expressivos não ofereceram. O trabalho rítmico de músicas como “In My Arms” e a excelente “Falling Down” é um belíssimo pé no pop que, aliado com as dissonâncias e toda a configuração estética disponível nos tanques de reverb, ajudou a produzir um disco balanceado que equaliza algo fresco e honesto com um aparente comprometimento cínico de uma aura que pairava naquele início dos anos 90″.

Loveless – My Bloody Valentine (1991)

Loveless, do My Bloody Valentine, chega a ser famigerado de tão reverenciado que se tornou ao longo de seus mais de 20 anos de existência. Talvez hoje ele perca um pouco do seu charme por existirem tantos simulacros seus espalhados mundo afora. Contudo, é fundamental justamente por isso e – seja desconfortável ou não, vai ser sempre lembrado pelo seu ineditismo. Loveless representa pro shoegaze aquilo que Édipo Rei representa pra tragédia de acordo com a percepção de Aristóteles: se houvesse um manual elencando os elementos que compõem uma obra perfeita do shoegaze, estes seriam todos encontrados no róseo monstro de Kevin Shields. Mas isso não significa que Loveless é um disco manualístico. Pelo contrário: ele é o marco zero de um experimentalismo reproduzido exaustivamente por dezenas de outras bandas que vieram depois”.