Graciliano Ramos: vida e obra do romancista alagoano

Fonte: Jornal do Campus (USP), 27-10-2020

No aniversário do autor, entenda a relevância de seu legado, explicada por um especialista

Arte: Gabriela Caputo/Foto: Site Graciliano Ramos

Uma família retirante composta por um homem, uma mulher, dois meninos e uma cadela, chamada Baleia. De plano de fundo, a seca — que é passageira, mas sempre retorna.

Tal cenário é conhecido na literatura brasileira como o descrito no primeiro capítulo de Vidas Secas, romance publicado em 1938. A célebre obra e uma lista com várias outras integram o legado de Graciliano Ramos. Com um estilo próprio marcado pela escrita precisa e direta, seca e sem floreios, e com temáticas que denunciam as mazelas da sociedade, o autor marcou a literatura brasileira e até hoje é um nome de gigante relevância.

Graciliano Ramos de Oliveira nasceu há 128 anos, em 27 de outubro de 1892, na cidade de Quebrangulo, Alagoas. Filho de comerciantes, Graciliano alternou a vida entre o Nordeste e o Rio de Janeiro, atuou no jornalismo, na política e, ao mesmo tempo, desenvolveu-se como literato.

Suas primeiras publicações foram crônicas em jornais e revistas, para os quais escrevia através de pseudônimos. Como político, redigiu relatórios que chamaram a atenção pelo estilo particular de escrita, para além do tom burocrático. A partir deles, foi notado por um editor e, em 1933, teve sua primeira obra publicada, o romance Caetés.

O modernista e a obra

Nos anos seguintes à publicação de Caetés, outros romances foram lançados: São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas Secas (1938), para citar os mais conhecidos. Graciliano também publicou livros voltados para o público infantil, além de contos, crônicas e obras memorialistas. A mais conhecida destas é Memórias do Cárcere (1953), publicada postumamente, que registra o período de quase um ano em que esteve preso pelo governo Getúlio Vargas, entre 1936 e 1937. Quando ainda finalizava a obra, em 20 de março de 1953, aos 61 anos de idade, Graciliano faleceu em decorrência de um câncer no pulmão.

De acordo com a classificação usual da literatura brasileira, Graciliano Ramos pertence à segunda geração modernista, ou Geração de 30, que compreende o período entre 1930 e 1945 e inclui autores como Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz. Nesse período se sobressaem os temas nacionalistas, sobretudo regionalistas.

Segundo Thiago Mio Salla, doutor em Letras e em Ciências da Comunicação pela USP, professor da ECA e autor de estudos e livros sobre Graciliano, o destaque do romancista como um dos maiores autores da literatura brasileira do século 20 se apresenta na associação entre três vetores: rigor formal, introspecção (enfoque nos conflitos íntimos das personagens) e problematização de diferentes temas de caráter social, como a miséria e a exploração. “Ao mesmo tempo que existe uma contenção formal, uma maestria do estilo, paralelamente há uma revolta em termos temáticos, por sua vez temperada por uma busca permanente, uma verticalização na análise dos personagens e dos problemas colocados”, explica.

No que diz respeito à categorização das fases modernistas, Salla explica que o discurso consolidado é o de que na primeira fase modernista, que compreende a Geração de 1922, a ênfase seria mais formal, com um tratamento inovador na linguagem. Já na segunda fase, a Geração de 1930, um momento mais disfórico e crítico, o foco estaria no conteúdo e nas matérias tratadas. Nessa época há destaque para o gênero romance no modernismo, que se afirma e vive um momento de expansão do público leitor, já que até então o que se tinha majoritariamente era a poesia.

Para o professor, é importante ter em vista que a conceituação sobre gerações modernistas não é “pacífica”. Segundo Salla, o próprio Graciliano reconhecia em parte as conquistas proporcionadas pelo modernismo de 1922, mas acreditava que foi sua geração que trabalhou pela “construção efetiva do romance nacional, da literatura brasileira num sentido mais abrangente.”


Quanto ao destaque de Graciliano dentro da Geração de 30, Salla afirma que o escritor “se destaca como um dos autores nordestinos, em um momento de interesse por essa parte do Brasil e contexto de ênfase nacionalista muito grande. O Nordeste era visto como um espaço de reserva de brasilidade, ao passo que toda a nossa faixa costeira, principalmente o Sul-Sudeste, já teria sido de alguma forma internacionalizada”. Assim, os costumes propriamente nacionais deveriam ser buscados na região Nordeste.

Outro elemento importante que diferencia Graciliano dos autores de sua geração relaciona-se ao ponto de vista formal: “A busca por um apuramento da linguagem, por libertar o texto de todo tipo de ‘miçanga literária’, como ele mesmo coloca.”

“Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer […] Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como falso; a palavra foi feita para dizer.”— Trecho de entrevista, registrado no livro Linhas Tortas (1962)

Além disso, o professor aponta a verticalização e a introspecção da obra do alagoano. “Nos anos 30 havia uma separação muito nítida entre autores que se diziam realistas e autores intimistas. Ao passo que os primeiros preconizavam uma literatura mais centrada no tratamento de questões de caráter social, os outros estavam mais presos na representação de dramas urbanos, de um indivíduo burguês”, explica. Graciliano representa um ponto de contato entre as duas tendências. “Ele não deixa de continuar com a revolta temática em muitos aspectos, ou seja, essa literatura centrada em tratar das mazelas do interior do país, mas ao mesmo tempo faz isso realizando um mergulho introspectivo nos personagens, na própria apresentação da situação.” 

Mais do que realizar uma simples denúncia, o romancista a ficcionaliza e transforma em uma obra que vai além da região que ele representa, com um aspecto de certa forma universal. “É como ele consegue conferir ao particular uma amplitude maior”, completa.

Jornalista, político, escritor

Ao longo de toda sua vida, Graciliano não se deteve ao ofício de escritor, mas a habilidade com as palavras o acompanhou em suas outras atividades. Ainda jovem, começou a trabalhar em jornais, exercendo sobretudo o papel de revisor — atuação que manteve praticamente até o fim da vida —, além de cronista, conforme explica Thiago Salla.

Na esfera pública, foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios, em Alagoas, em 1927. Ele não chegou a completar seu mandato, renunciando após dois anos, sobretudo por causa de dificuldades financeiras. Mas ficou no cargo tempo o suficiente para chamar atenção pela sua forma singular de redigir relatórios burocráticos. Segundo Salla, o autor aparece para o mundo literário através desses documentos escritos em registro linguístico pouco usual, mais próximo do registro literário. 

Foram dois relatórios anuais enviados ao governador, em 1929 e 1930, que chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor que contatou o autor alagoano imaginando que ele pudesse ter algum romance parado na gaveta. “Esses dois documentos públicos abrem as portas para o Graciliano escritor. O próprio Graciliano diz isso de modo jocoso, que as obras dele mais famosas em vida foram justamente os dois relatórios”, conta o professor.

Graciliano ainda foi, em Alagoas, diretor da Imprensa Oficial e também diretor da Instrução Pública — cargo equivalente ao de Secretário Estadual da Educação. Em 1936, enquanto ocupava o cargo, foi preso por operações do governo Vargas devido às suas convicções políticas e encaminhado para o Rio de Janeiro. Sem processo e acusação formal, permaneceu encarcerado por quase um ano. As experiências vividas foram registradas em Memórias do Cárcere (1953). Após sair da prisão, o autor exerce o posto de inspetor federal de ensino no Rio até o fim da vida.

Manuscritos de Graciliano Ramos, do Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros. Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Segundo Salla, a atuação de Graciliano tanto na política quanto no jornalismo apresentam pontos de contato com o que apresenta em sua obra. Sendo revisor profissional desde o início de sua atuação na imprensa, Graciliano apresentava um apuro formal característico, e também utilizava marcas de correção nas provas de seus livros.

A relação entre as posturas de servidor público e de artista, por sua vez, é ainda mais evidente, sobretudo na investigação do mundo ao redor. “A consciência crítica e a busca pela superação daquele contexto de miséria é algo que está presente na atuação dele como homem público e também enquanto artista”, relata Salla.

Vidas Secas: porta de entrada para o mundo de Graciliano

A obra mais conhecida do autor é Vidas Secas (1938). Segundo Salla, isso se dá, no que diz respeito à circulação do livro, pelo fato de ser um livro mais acessível, facilmente encontrado em bibliotecas públicas e sebos. “Além disso, a estrutura formal do romance, o fato de ser composto por quadros, também de alguma forma facilita e permite uma visão multifacetada do que é o universo que o Graciliano constrói”, relata.

A importância da obra se dá, em primeiro lugar, pelo seu caráter de denúncia social. Há uma estrutura circular no livro, em função da apresentação da seca no primeiro e no último capítulo, “mas não se trata de um romance propriamente da seca. É um romance cuja grande parte se passa num período de relativa prosperidade”, explica o professor. Para além das condições ambientais, a obra faz uma leitura mais abrangente e complexa daquele contexto, tratando de vidas humilhadas (“secas”) e da exploração social à qual aquela população estava submetida.

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. […] Arrastaram-se para lá, devagar, Sinha Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás.
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Trecho inicial de Vidas Secas.

Trata-se de uma das principais ilustrações do autor quanto ao estilo de texto cru, direto e elaborado. Além disso, outro destaque no livro é a presença do discurso indireto livre. Thiago Salla explica que isso era novidade diante os três romances publicados até então por Graciliano. “Isso é extremamente interessante do ponto de vista de verossimilhança artística do texto porque em São Bernardo e Angústia  — narrativas cujos protagonistas pertencem a classes altas — Graciliano usa um discurso em primeira pessoa. Enquanto membro de uma condição social mais elevada ele podia falar com propriedade”. 

Já para tratar dos personagens de Vidas Secas, precisou se valer do discurso indireto livre. “Não é um romance narrado da perspectiva do Fabiano, mas sim um romance multiperspectivo. Ele mescla a voz dele à dos personagens porque não teria condições de sustentar um discurso em primeira pessoa”, pela distância entre as experiências.

No caso de Fabiano, a dificuldade de comunicação, por exemplo, é importante para se pensar em sua exclusão social: “Daí o uso desse discurso como uma forma de perscrutar o que aquele personagem pensava ou as poucas palavras que emitia.”

Vidas Secas, filme de Nelson Pereira dos Santos, baseado no livro. Imagem: Reprodução/YouTube

Por último, Salla destaca a estrutura formal do livro, marcada pela noção de “romance desmontável”. Através de seus capítulos, apresenta “vários quadros que formam um todo um tanto quanto fragmentário, que confere certa modernidade e inovação ao livro.” Cada conto pode ser lido de modo isolado, ainda que o sentido completo demande a compreensão do todo. Esses quadros trazem “uma visão realmente multifacetada do contexto a partir de focalizações diferentes que o autor procura conferir na abordagem de cada personagem ou de situações diferentes”, explica. O formato se relaciona à história da confecção do livro, por um Graciliano com dificuldades financeiras que vendeu o livro de forma parcelada. 

Graciliano para além de Vidas Secas: por onde começar?

Por todos os motivos apresentados, Vidas Secas é uma boa forma de começar a ler a obra de Graciliano, opina Thiago Salla. Porém, não é o único livro indicado para quem quer ter contato com o autor. O professor recomenda São Bernardo (1934): “É um livro extremamente forte, que tem a presença de uma primeira pessoa como narrador. É interessante observar a ascensão e a derrocada desse personagem. Numa prosa também muito sintética, Graciliano se abre de modo mais efetivo, por assimilar um léxico regional, e constrói essa figura monstruosa que é Paulo Honório”.

A segunda indicação é Infância (1945), livro de memórias que ajuda a entender os elementos do autor que vão se estender por todos seus romances. “O livro é extremamente poético e lírico, e tem uma questão de alteridade, de recuperarmos nossa infância ao lermos aquelas páginas.”

O professor também destaca o livro Angústia (1936)que entrou para a lista de leituras obrigatórias do vestibular da Fuvest em 2019, e por isso sua popularidade tende a crescer nos próximos anos. A narrativa acompanha Luís da Silva, que atua como revisor para um órgão público, e dedica-se ao fluxo interior do protagonista. “É talvez um livro um pouco mais difícil do Graciliano, mas extremamente enriquecedor, e também vale muito a leitura”, finaliza.