A redenção de Caravaggio

 

Pulbicado originalmene pelo saudoso jornalista cultural Daniel Piza no Estado de São Paulo

Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610) era obcecado por momentos em que o ser humano é subitamente tocado por alguma coisa, e “tocado” em seu caso tinha um sentido literal: são os corpos que sofrem os acontecimentos e expressam as reações. Da meditação de São Jerônimo à decapitação de São João Batista, do autoembevecimento de Narciso à flagelação de Cristo, há sempre um fato transformador, uma surpresa que flagra o corpo e invade o espírito. Não é por acaso que ele retratava com frequência cabeças degoladas, semblantes de espanto, feridas abertas, cobras e crânios, martírios e sacrifícios. No entanto, seu drama, visceral como é, só tem a força que tem pela arquitetura rigorosa, pela teatralidade estudada, pela organização geral dos movimentos.

Esse drama de espaços amplos e tensões concentradas fica ainda mais nítido no primoroso livro de arte Caravaggio – The Complete Works, de Sebastian Schütze (Taschen, US$ 95 na livraria virtual Amazon, sem frete), que dá início às homenagens dos 400 anos da morte do gênio italiano. O volume, de 30 x 40 cm, é um “tour de force” gráfico: a qualidade das reproduções, que consta terem sido pessoalmente supervisionadas pelo dono da editora, Benedikt Taschen, parece insuperável; além de conter todos os quadros, ele oferece diversas ampliações de partes e detalhes relevantes; desse modo, o leitor navega do macro ao micro e de volta, tal como pedem as composições de Caravaggio.
Enquanto o anunciado fim dos livros em papel não chega, o mundo editorial capricha cada vez mais: somente ver as pinturas originais substituiria o prazer de ter, folhear e ler um produto como este. E as pinturas originais de Caravaggio, como se sabe, estão espalhadas pelos mais diversos museus. O trabalho de Schütze, cujo texto é também admirável pelo respeito à complexidade da figura de um artista ainda tão controverso, é consequência de anos de pesquisa sobre autenticidade e datação – pesquisa que envolveu estudiosos de vários países até que se pudesse chegar ao ponto de poder intitulá-lo de “obras completas”. Estamos, portanto, num estágio aguardado há muito tempo por todos que se interessam por pintura.
Como em uma de suas imagens, a de Caravaggio ficou muito tempo imersa em sombras. Só despontou realmente em 1951, quando o grande crítico e historiador de arte Roberto Longhi organizou uma retrospectiva em Roma – cujo livro será lançado no Brasil em outubro, pela Cosac Naify – e mostrou que ele era mais que o fundador involuntário de uma escola, a dos “caravaggescos” (famosos por suas densas escuridões); era um artista de primeiríssimo time e uma espécie de elo entre Michelangelo e Rembrandt, ou seja, entre maneirismo e barroco. Nos últimos 50 anos, essa reputação só fez se espraiar e, claro, derivar em noções divergentes. Schütze nota que há o Caravaggio mais clássico, visto como um continuador de Michelangelo, Lotto, Ticiano ou Giorgione, e o mais romântico, precursor de Latour, Delacroix, Goya e tantos mais.
O crítico inglês Roger Fry, no final do século 19, escreveu que Caravaggio teria sido um dos primeiros artistas a mudar a arte “pela revolução, não pela evolução”, segundo a frase reproduzida no livro. Essa visão provavelmente tem a ver com a vida de Caravaggio, que assassinou um jovem em Roma em 1606, não se sabe se intencionalmente ou não, feriu outros e foi obrigado a deixar a cidade eterna. Foi para Nápoles, Malta e Sicília, mas terminou preso depois de arranjar novas brigas. Morreu aos 39 anos em circunstâncias obscuras, possivelmente por uma febre, em Porto Ercole, na Toscana. Com essa ficha policial e ainda bissexual, não espanta que sua biografia tenha inspirado trabalhos como um filme de Derek Jarman e um policial de Andrea Camilleri. Como em Van Gogh, sua arte é muito vista por sua vida.
O catálogo de Schütze ajuda a esclarecer que Caravaggio atingiu a revolução por meio da evolução, isto é, primeiro dominou magistralmente os antecessores e depois deu o salto da individualidade. Rasgos originais apareceram desde a primeira fase, quando estudava na Lombardia com Simone Peterzano, que por sua vez tinha sido aluno de Ticiano. Assim absorvia as grandes inovações do Renascimento veneziano – em destaque a ocupação cênica do espaço, com diagonais e vazios a enfatizar os gestos, numa espécie de cinema 3D congelado – e, ao mesmo tempo, a pintura lombarda, influenciada pela flamenca, mais geométrica e doméstica. Daí seus quadros quase delicados da primeira fase como Baco e Menino com Frutas, de estruturas simples e figuras afetadas, num maneirismo de câmara. Aqui e ali já aparecem características como bocas semiabertas e detalhes ásperos, a exemplo da luva furada em Os Blefadores; e temas caros como a Cabeça da Medusa com seu jorro kitsch de sangue.
Mas é só quando chega a Roma, em 1599, para pintar a capela da igreja San Luigi dei Francesi, que Caravaggio chega ao que Schütze chama de “autonomia artística”. Embebendo-se no classicismo, partindo para pinturas multifocais e grandiosas como O Martírio de São Mateus e O Sepultamento de Cristo, dialogando com a obra de Bernini, Carracci e, claro, Michelangelo, desenvolveu seu dom para a anatomia e o chiaroscuro. Mas nunca de maneira ortodoxa. Quando retrata a Virgem e o Menino Esmagando a Cabeça da Serpente, chama todos os olhares para os pés cuidadosamente sobrepostos da mãe e da criança, cujos rostos parecem ter um discreto prazer no ato; quando encena a Coroação com Espinhos, deixa oculto o trabalho braçal atrás da cabeça e com isso põe foco no sangue que escorre pela testa; e quando mostra Tomás Duvidando acentua o dedo que penetra a ferida no corpo de Cristo, contrastando nos dois outros vértices o cenho espantado do apóstolo e a expressão serena do messias.
Brigão e heterodoxo, mas não rebelde nem herético, Caravaggio foge de Roma e busca outros aristocratas e cardeais para serem seus mecenas – e os consegue em Nápoles, Malta (onde pertenceu à Ordem dos Cavaleiros e depois foi expulso) e Sicília. Nesse período atinge seu apogeu. Em A Decapitação de São João Batista, volta a uma simplicidade composicional – cinco figuras em semicírculo, observadas de longe por dois prisioneiros, o mártir deitado no chão no centro da tela com sangue no pescoço, pele lívida e tecido vermelho – e transfere boa parte da dramaticidade para as grandes áreas escuras. Como Rembrandt aprofundaria logo depois, os focos de luz são deliberadamente distribuídos, reservados às passagens mais significativas; o rosto do apóstolo em A Negação de São Pedro, com pinceladas menos presas às linhas, tem um refinamento psicológico digno do gênio holandês. E Davi com a Cabeça de Golias – o sangue menos destacado do fundo escuro, o rosto à meia-luz entre triste e orgulhoso – sugere caminhos futuros que a morte suspendeu. Tamanha arte, porém, sobretudo em livros como este, continua tocando a posteridade.