Blackgaze: o encontro do profano Black Metal com o angelical Shoegaze

Por Bruno Rocha. Originalmente publicado em Roadie Metal.

Antes de adentrarmos na matéria em si, cabe aqui um prólogo. Este redator que vos fala defende o uso de termos que façam distinção entre determinados estilos de Heavy Metal de acordo com suas peculiaridades estritamente musicais, desde que o cunho de tais termos não supere os limites do bom senso. A infinidade de nomes de gêneros de Metal, muitos deles sem motivo aparente, causa confusão no ouvinte veterano, imagine para um iniciado. A criação de um novo termo, no meu humilde modo de entender, só é adequado quando a música apresenta, de fato, novas características de modo que os topônimos que já existem não são capazes de defini-la.

Passada esta explicação, passemos, pois, para a pauta principal.

Uma banda bastante interessante e que vem chamando muito a atenção dos últimos dez anos para cá é a francesa Alcest. O projeto liderado pelo vocalista/guitarrista Stéphane “Neige” Paut conseguiu ser a última banda precursora de um novo estilo de Heavy Metal; neste caso, do Blackgaze, que nada mais é do que as levadas rápidas e agressivas do Black Metal, misturadas com a beleza e a atmosfera das melodias do Shoegaze.

Mas que diabos é Shoegaze?

O gênero Shoegaze é um dos filhos do pós-punk (ou neto, sei lá… Não tem cartório neste mundo capaz de registrar a árvore genealógica do Rock), meio-irmão do Indie Rock. Este estilo se caracteriza por vocais femininos doces e angelicais, ou masculinos graves e calmos, que recebem um tratamento de overdub no estúdio, de modo a deixá-las atmosféricas e confortáveis. Aliado a este detalhe, as guitarras também ganham vários efeitos em seus timbres limpos, como fuzz e delay, o que aumenta a sensação de etereidade das músicas. O contrabaixo faz o seu papel marcante, como é de se esperar do pós-punk. Tudo isso junto consegue moldar uma atmosfera bela e confortante, quase sobrenatural, ao mesmo tempo em que pode aparentar sombriedade ou mesmo fantasmagoria. O Shoegaze consegue esboçar um verdadeiro mix de emoções e de ambiências, o que o torna atraente para quem se identifica com músicas sentimentais. É como se fosse uma levitação às nuvens, uma sensação confortante de que nada mais neste mundo existe ou importa. O choque entre o belo e o sombrio.

O termo “shoegaze” (aquele que observa os sapatos) reflete o fato de que seus representantes pouco se movem ou esboçam expressões faciais no palco, e passam o tempo quase que todo olhando para o chão, introspectivos, mexendo nas pedaleiras de guitarras.

Este movimento começou a brotar no Reino Unido na segunda metade dos anos 80. Influenciados pelo Rock Gótico de Siouxsie And The Banshees e pelo Rock atmosférico de Cocteau Twins, bandas como My Bloody Valentine, Moose, The Jesus And Mary Chain, Slowdive e Lush, dentre várias outras, começaram a praticar a nova ideia de som. A nova cena ficou conhecida como “The Scene That Celebrates Itself”, por conta da camaradagem que havia entre os integrantes das bandas, que se apoiavam entre si frequentando os shows uns dos outros e até tocando juntos, se fosse o caso.

O álbum Isn’t Anything, lançado em 1988 pelo My Bloody Valentine, é considerado o marco-zero do Shoegaze, embora Kevin Shields, o líder da banda, sempre tenha negado o uso pesado dos efeitos de guitarra que caracterizam o estilo. The Jesus And Mary Chain, assim como o My Bloody Valentine, é outra banda que veio do começo dos anos 80, se libertando da sonoridade típica do Joy Division e ajudando a moldar o novo estilo na segunda metade da década.

Para que o ouvinte compreenda bem o que é o Shoegaze em sua sonoridade e essência, destaco aqui duas bandas que já nasceram no fim dos anos 80, praticando o novo estilo. A primeira delas é o Lush. Fundada em 1987, pode-se definir o Lush como sendo uma mistura do som alternativo do Sonic Youth com a atmosfera viajante do Cocteau Twins. Tendo a frente as garotas Miki Berenyi e Emma Anderson (vocais, guitarras), o grupo sempre passeou bem por diversas instâncias do pós-punk, desde sons mais rápidos e animados até músicas lentas, introspectivas e etéreas, mas sempre com as características do Shoegaze em primeiro plano. Desde sua fundação até hoje, o Lush já se desfez e se remontou diversas vezes. As duas músicas abaixo, Superblast! e a faixa-título do EP Desire Lines (1994), exibem as duas facetas do Lush: a primeira, é rápida e animada; a segunda, lenta, triste e tocante, e põe muita banda de Doom Metal no chinelo!

Lush
Lush

A outra banda que destaco é o Slowdive. Um dos nomes mais importantes do movimento Shoegaze, a banda oriunda da cidade de Reading é perita em produzir sons viajentes e psicodélicos, capazes de evocar lembranças marcantes e de transportar o ouvinte através de ondas metafísicas. Seu líder, o guitarrista e vocalista Neil Halstead, sempre compôs baseado em suas influências de Pink Floyd e de Siouxsie And The Banshees, que, juntamente com a voz angelical de Rachel Goswell, acabava por moldar uma liga perfeita de sonoridade viajante. Após encerrar suas atividades em 1995 e de seus antigos integrantes trabalharem em projetos eletrônicos/industriais, o Slowdive anunciou seu retorno em 2015. A música When The Sun Hits, do álbum Souvlaki (1993) é a perfeita síntese do que é o Shoegaze.

Slowdive
Slowdive

Assim como no Heavy Metal, guardadas as devidas proporções, a emergente cena Shoegaze logo se viu por água abaixo e viu o interesse em suas bandas serem perdidas, dado o advento da movimento Grunge.

Sob outro ponto de vista, nesta mesma época o Black Metal tomava de assalto todas as atenções da Noruega e da Europa, com bandas que revolucionaram o modo de fazer Metal Extremo. Escondidos sob a fama dos nomes mais manjados da cena norueguesa, as bandas Strid e Forgotten Woods surgiram praticando o sujo e cru Black Metal típico daquele frio país, mas com um enfoque mais depressivo, ao invés de priorizar a violência sonora, dando origem ao chamado Depressive Black Metal, sintetizado no EP homônimo do Strid, lançado em 1993. Tais bandas eram as principais influências do jovem músico francês Neige, que na tenra idade de 15 anos já via sua desconhecida banda chamada Alcest lançar sua primeira demo, Tristesse Hivernale, em 2001, que mostrava um Black Metal cru e agressivo, mas na linha depressiva do Strid ou do antigo Dimmu Borgir.

Depois do lançamento da demo, Neige se viu sozinho com sua banda, já que os outros dois integrantes resolveram pular fora. O jovem e visionário Neige enxergou o lado bom de ser o único integrante do Alcest, e começou a planejar a mudança de sonoridade de sua banda, de acordo com suas influências pessoais, sem precisar justificar nada para ninguém.

Assim, em 2005, o Alcest libera o EP Le Secret, com duas longas composições que mostraram o resultado da brilhante ideia que Neige teve em juntar ao seu Black Metal depressivo vocais limpos e doces, juntamente com melodias etéreas, típicas do Shoegaze. Estava sendo inaugurado ali o Blackgaze. Michael Nelson, jornalista do site Stereogum, determinou que o EP Le Secret mais parecia uma colaboração entre Cocteau Twins e Burzum, em analogia ao contrataste entre o atmosférico e reflexivo dos britânicos e o cru e depressivo da banda norueguesa. Neige explica que criou o Alcest para dar vazão a imagens e paisagens de um mundo que ele sonhou e imaginou enquanto era criança. Ainda, o nome “alcest” não existe e não possui nenhum significado aparente, mas Neige teve a ideia deste nome em alusão ao mundo imaginário que o menino Stéphane criou em sua mente, ainda na época que o Slowdive dava seus primeiros passos.

A musicalidade que o Alcest mostrou neste EP e nos trabalhos subsequentes superam as definições de Black Metal, de modo que chamar o som do Alcest de Metal Negro é até uma blasfêmia, tamanha a beleza e transcendência que a música de Neige exala. Com o passar do tempo, o Alcest mergulhou de vez no Shoegaze, cujo ápice foi no álbum Shelter, de 2014, onde pouco se recorda os antigos traços Black Metal de onde a banda veio. Em entrevistas, Neige explica que estava mergulhado e fascinado pela música do Slowdive. Tanto é que um dos convidados que Neige trouxe para Shelter foi Neil Halstead, principal compositor da banda britânica ícone do Shoegaze. No álbum seguinte, Kodama (2016), o Alcest trouxe de volta as passagens Black Metal ao seu som viajante, tornando a fazer o Blackgaze que o consagrou.

Nos Estados Unidos, outra banda que teve a ideia de unir o profano do Black Metal com o angelical do Shoegaze foi o Deafheaven. Mais pesado que o Alcest, mas não menos introspectivo, o Deafheaven nunca se lançou somente para um dos lados, e sempre se manteve fiel em balancear os dois estilos em sua música, que ficou sacramentada no álbum Sunbather, de 2013. Seu estilo também serve como referência ao que se determinou chamar de Post-Metal.

Fora o Alcest e o Deafheaven, outras bandas agora trilham os caminhos do Blackgaze, como a irlandesa Altar Of Plagues (esta com alguma influência também do Djent), a francesa Bosse-de-Nage, que segue a escola do Alcest, e a britânica Jesu, que apesar de não possuir elementos de Black Metal em sua música, alia com perfeição seu Heavy Metal experimental com as peculiaridades do Shoegaze. E é assim, com a união do belo com o negro, do profano com o angelical, que o Metal experimental vem colhendo novos frutos na última década, com músicos criativos e que se posicionam além de seu tempo, em vanguarda, criando novas formas de se fazer música tocante e pesada.