De Jasão à Medéia, passando por Midas, Édipo tornou-se Narciso

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil, 29-10-2020

por Carlos Fernando Galvão

Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária. Machado de Assis (1839-1909), escritor realista brasileiro – no conto “Um apólogo”

A riquíssima mitologia grega é composta de belas histórias, embora trágicas em sua maior parte, que nos chegaram por intermédio de perspectivas privilegiadas de autores como Hesíodo, Apolodoro e Homero, e pode ser considerada, ao menos no Ocidente, como a primeira grande tentativa, mítica e mística, mas já com princípios de racionalidade, de propor uma Cosmogonia ou Cosmogênese (origem do Universo). As sagas narrativas helênicas versavam, na essência, sobre a eterna luta entre o caos e a ordem. A palavra Cosmos, empregada pela primeira vez por Pitágoras, significa “ordem, bem ordenado”.

Este artigo e sua narrativa mitológica estão baseados nas pesquisas do professor de Letras e de Literatura norte americano, Thomas Bulfinch (1796-1867), e do filósofo e ex-Ministro da Educação da França, Luc Ferry, dos quais retirei as histórias que apenas resumi aqui. Ao longo dos resumos, fui escrevendo comentários para, ao final do texto, dividir com você, cara e caro leitor, algumas reflexões que fiz a respeito do Brasil e do mundo como ficou depois de 2018. Os livros estão referenciados ao final do artigo.

Assim, a partir das pesquisas e dos relatos de Bulfinch (2006) e de Ferry (2009), observamos que muitas são as aventuras a partir das quais podemos retirar valiosas reflexões sobre a vida: a odisseia de Ulisses para conseguir retornar à sua cidade natal, Ítaca, depois da Guerra de Tróia, e ter, novamente, o que os gregos chamavam de “boa vida”, com a morte como coroamento da existência terrestre; os 12 trabalhos do semideus (filho de um deus com uma mulher mortal) Héracles (ou Hércules) em sua luta para manter a ordem universal iniciada por Zeus, seu pai; o enfrentamento entre os semideuses Teseu e Minos, este último, Rei de Creta, não diretamente, mas pela batalha de Teseu contra o Minotauro, (homem com cabeça de touro, resultado de maldição lançada por Poseidon, Deus das Águas), filho de Minos, no labirinto que lhe servia de moradia e prisão ou mesmo o voo para a liberdade, do inventor desse labirinto, Dédalo, que acabou preso em sua obra arquitetônica, e seu filho, Ícaro, rumo ao Sol e à morte iminente deste último. Talvez em outros textos possamos passear um pouco por essas histórias, mas não por agora.

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A História do nosso mundo começou com a união conjugal entre o Titã original, o Deus Urano, e sua consorte, Gaia. Urano era muito fogoso e queria copular com Gaia todos os dias, gerando vários filhos. Porém, a partir daquilo que permeia toda mitologia grega, o dom da previsão do futuro, Urano previu a perda do poder de governar o Universo para um dos filhos e tomou a decisão de prender todos eles no útero da esposa. Cansada da tirania do marido, Gaia conseguiu libertar um dos rebentos, Cronos (palavra grega que quer dizer “tempo”; daí “cronologia”) que, com a ajuda da mãe, certa noite, depois do coito entre o casal, surpreendeu o pai e, atacando-o, decepou-lhe o pênis, separando, deste modo, o casal divino, originando o Céu (Urano) e a Terra (Gaia). Com a castração, como informação adicional, parte do sêmen de Urano foi derramada no mar, fazendo nascer outros Titãs.

Cronos, então, libertado pela mãe, da tirania de seu pai, acabou por se constituir no principal Titã dos primórdios do mundo; ele também engolia os filhos, o que pode ser interpretado como uma metáfora: o tempo nos engole, sem piedade, e não perdoa o que fazemos sem o levar em consideração. O tempo no limite, contudo, também nos define, pois não sendo possível dele nos libertarmos, somos e nos tornamos aquilo que sentimos, pensamos e conseguimos fazer, em vida, com o tempo que temos.

De todo modo, a queda de Urano levou, como previsto, seu filho Cronos, ao poder sobre o mundo. Temendo, como o pai, perder o trono, tendo casado com uma Titã chamada Reia, Cronos passou a engolir cada filho que nascia, aprisionando-o, deste modo, em seu próprio estômago, ao invés de, como o pai, prender a prole no útero materno. O estratagema de pouco adiantou porque, enganado pela esposa, como igualmente acontecera com o pai, ao parir Zeus, Reia ofereceu uma pedra para Cronos engolir e ele o fez, sem perceber a artimanha. Zeus, então, crescido e forte, lutou com Cronos e, vencendo-o, libertou seus irmãos, dentre eles, Poseidon, que iniciou seu reinado nos mares, e Hades, que passou a governar o Tártaro, o submundo das almas mortais que não haviam tido uma vida honesta e justa. Ao lado do Tártaro, também governado por Hades, havia os Campos Elíseos, o equivalente ao Paraíso Cristão ou Muçulmano, para onde se dirigiam as almas boas e justas. Zeus reinava sobre tudo e todos com a ideia de manter a ordem universal, baseado em sua cidade divina no Monte Olimpo, cujos habitantes são, por óbvio, os Deuses Olímpicos.

Como escrevi há pouco, o artigo tem como pano de fundo a cosmogênese até aqui descrita, mas está construído com foco em três histórias em particular.

Argonautas

Nossa primeira aventura é o relato da expedição dos Argonautas e de seu navio, Argos. Na viagem estavam presentes deuses como Ares (ou Marte, no latim), deus da guerra, e sua amante, Afrodite (ou Vênus, no latim), deusa do amor e da sexualidade. Afrodite era esposa de Hefesto (o único Deus tido como feio e que era extremamente inteligente e habilidoso, tendo forjado as armas dos demais deuses, como o raio de Zeus, o tridente de Poseidon e o garfo de Hades). Dessa relação extraconjugal, entre Ares e Afrodite, nasceu uma menina, chamada Harmonia, símbolo do equilíbrio que deve haver entre opostos, como o amor e a guerra, para que o caos não atrapalhe a ordem vigente. Na viagem, também estavam presentes semi-deuses, como Teseu e Hércules, ambos filhos de Zeus, e Orfeu, que salvou a expedição com sua música. Contudo, a saga dos Argonautas é, basicamente, a história de Jasão e de seus feitos e é dele que passaremos a tratar.

Os Argonautas partiram para a cidade de Cólquida, em busca do Tosão ou Velocino de Ouro, que era a pele dourada do cordeiro alado Crisómalo, sacrificado por Frixo, em honra à Zeus, no dia de seu casamento com Calcíope, princesa e filha do Rei de Cólquida, Eetes. Em agradecimento, Zeus reservou um lugar especial no Olimpo para Crisómalo e sua pele de ouro passou a ter propriedades mágicas, como a regeneração de doenças. Em alguns relatos, embora não consensuais, o Velocino poderia, até mesmo, ressuscitar os mortos – mas isso estaria em desacordo com os poderes de Hades, que reinava sobre as almas humanas e que não permitia a ninguém escapar do Tártaro ou dos Campos Elíseos, daí, talvez, esta seja uma versão pouco crível de ter sido, efetivamente, narrada, originalmente.

Jasão criado pelo Centauro Quíron, fora exilado ainda criança, junto com a família; era filho de Esão, irmão de Pélias, que o destronou, tomando o poder em sua cidade chamada Lolco. Pélias, em honra à Poseidon, decidiu, além de realizar sacrifícios, promover a busca pelo Velocino, até então, pertencente à Eetes, rei de Cólquida, que o mantinha guardado e vigiado, posto que uma profecia dizia que se o presente divino lhe fosse roubado, tal fato traria a desgraça à cidade. Pélias prometeu ao vencedor da busca pelo artefato, grande prêmio e honra em vida. O Velocino era bem guardado, protegido por um Touro e por um Dragão mágicos, que nunca dormiam. Jasão atendeu ao chamado público de Pélias, que não o deixaria participar se soubesse de sua identidade: havia uma profecia do Oráculo de Delfos de que Jasão o mataria. Entretanto, com a ajuda de Medéia, filha de Eetes, feiticeira que prometera às filhas de Pélias que rejuvenesceria o pai, mas que o matou, enganando-as, e que se tornaria futuramente esposa de Jasão (até ser posta de lado por outra mulher e assassinar os dois filhos em comum como vingança), Jasão matou os dois monstros e levou o Velocino, só que não para a cidade em que seu tio Pélias governava; fugiu e se casou com Medéia, retornando para sua terra natal. Pélias, é claro, não escapou de seu destino, outro conceito muito presente na mitologia grega, e foi morto por Jasão, como profetizara o Oráculo.

Nesta passagem mitológica, podemos ver elementos conjugados nos seres humanos: traição, ódio e vingança – entre Jasão e Medéia; consequências na psique individual, como o medo que as pessoas sentem de monstros, reais e imaginários, que travam os sentimentos, os pensamentos e muitas das ações de todos nós, no dia a dia; comportamentos humanos fora dos padrões culturais vigentes, construídos e/ou impostos, como relações amorosas infiéis, notadamente nas esferas mais altas da sociedade – no caso em questão, aqui, entre dois deuses, Ares e Afrodite, expondo a promiscuidade humana, independente de juízo de valor sobre este fato; como o mal estar pelo contexto da relação entre governantes e governados – Pélias que desconfia de tudo e de todos para manter seu poder, que acaba servindo, apenas, para a reprodução deste próprio poder; a busca eterna pela cura de todos os males, psíquicos e materiais, materializada pela disputa ao Velocino de Ouro ou… enfim, a mitologia reflete muito do que somos e vivemos e as narrativas e sua forma são fundamentais para a preservação de nossa memória e saber.

Para ficarmos em um único exemplo, as palavras com as quais nos comunicamos têm sentidos primários e refuncionalizados, muitas palavras nas línguas ocidentais possuem suas origens, senão unicamente, também no Latim e no Grego Antigo, como é o caso da Língua Portuguesa. A palavra “simétrico”, por exemplo, vem do Grego “syn” (junto; encontro; união), mais “métron”, (medida). Por formação aglutinativa, “simétrico” quer dizer alguma coisa como “estar junto e em harmonia”, “estar em simbiose”, “ser proporcional”, o que igualmente pressupõe, na boa leitura, uma interação e, em intepretação adversa, uma exploração, por assim dizer, posto que o não simétrico é o desproporcional. O que não é simétrico está, assim, em desarmonia com o Cosmos, ou seja, com a ordem, e o Universo grego era, por definição, ordenado, o que era o mesmo que dizer harmônico.

Édipo

A segunda história conta as desventuras de Édipo e de sua família, até mesmo seus descendentes, como Antígona, sua filha, que foi condenada à morte por desobedecer ao Rei Etéocles, seu irmão, o qual guerreou pelo trono de Tebas contra outro dos irmãos, Polinice. Este último perdeu a guerra e morreu em batalha. Etéocles ordenou que o derrotado não fosse enterrado, muito menos com os rituais que deveriam ser dedicados a um príncipe. Não obstante, no mundo grego antigo, quem não era enterrado devidamente, estava condenado a vagar por 100 anos às margens do Rio Estíge, por onde sua alma deveria ser conduzida ao Tártaro ou aos Campos Elíseos que, como já vimos, era o reino do submundo de Hades. Caronte conduzia as almas para um lugar ou outro, em seu barco fúnebre, mediante os funerais corretos e cobrava duas moedas de ouro, sobrepostas nos olhos dos mortos. Inconformada, Antígona decidiu, arriscando a própria vida, enterrar seu irmão Polinice com as honras devidas e foi condenada à morte pela rebeldia e desobediência pelo irmão vencedor, Etéocles.

Os deuses do Olimpo, parecidos com o que relatam alguns sobre o Deus católico e judeu do Antigo Testamento (como pode ser constatado no Levítico, no Êxodo e no Deuteromônio), tinham muitas características humanas e suas imperfeições, como ciúmes e sede de vingança e seguiam ideias parecidas com a Lei de Talião. Esta última, compilada no Código de Hamurabi, Rei da Babilônia (período estimado entre 1.500 e 1.700 antes de Cristo), dizia que a cada crime, deve corresponder sentença e pena de igual gravidade e intensidade (que guarda semelhança com a posterior Terceira Lei de Newton); é o famoso “dente por dente, olho por olho”. Apenas a título de esclarecimento, Talião não foi uma pessoa, como muitos pensam até hoje, mas o conceito, criado por Humarabi, sobre a necessidade de equilíbrio entre atos e consequências, no mundo político e jurídico-penal. Vemos, aqui, a concepção de Harmonia, a filha de Ares e Afrodite, aplicada no mundo humano.

Antes de Édipo nascer, Laio, que era, pelos conceitos atuais, homossexual (sendo importante ressaltar que, no mundo Grego, a relação amorosa entre pessoas do mesmo sexo não tinha a mesma conotação pejorativa – e errada – da que, posteriormente, foi assumida no mundo ocidental e que até hoje, infelizmente, vige para muitos), tentou seduzir, sem sucesso, Crísipo, filho do Rei Pélope (que teria dominado vasta região do sul da Grécia e adjacências, daí a região ser conhecida como “Peloponeso”), sem sucesso. O rapaz, perturbado pelo assédio, teria se matado a partir desse ato do irmão de criação,  já que Laio havia sido criado por Pélope como um filho. O Rei, então, rogou a maldição: que ele não poderia ter filhos e, se os tivesse, o primogênito não apenas mataria Laio, como se casaria com a própria mãe e rogou aos deuses para que sua maldição não recaísse apenas sobre Laio, mas sobre sua eventual prole, se a tivesse. Certa noite, embriagado, Laio manteve relações sexuais com Jocasta e conceberam Édipo. Dada a previsão do Oráculo, Laio, já como Rei de Tebas, mandou um empregado abandonar o filho à própria sorte e, conta a lenda, o garoto foi adotado pelo Rei Políbio e pela Rainha Periboea. Ao tomar conhecimento da profecia, passada a puberdade, Édipo abandonou a cidade, achando que Políbio e Periboea eram seus pais e, por destinado, e desaviado, chegou às portas de Tebas, onde reinavam Laio e sua ainda muito jovem rainha, Jocasta.

Em um entroncamento, os cortejos de Laio e Édipo se cruzaram e, após ríspida discussão e briga, Édipo matou Laio, sem que nenhum dos dois soubesse de seus laços paternais e a primeira parte da profecia foi realizada. A notícia espalhada foi que o Rei morrera numa emboscada. Creonte, irmão de Jocasta, assumiu, interinamente o trono de Tebas. Ao chegar à cidade, Édipo ficou sabendo que a Esfinge, mulher gigante, com corpo de leão e asas de abutre, caçava pessoas, especialmente jovens e, uma vez capturados, lhes propunha enigmas os quais, não elucidados, condenavam o(a) infeliz à morte. Não obstante, se alguém acertasse alguma resposta, assim rezava a lenda, a Esfinge teria que se matar. Édipo acertou o enigma, a Esfinge se matou e, aclamado como salvador da cidade, Creonte ofereceu a mão de Jocasta em casamento, junto com o trono de Tebas. Édipo, sem saber que ela era sua mãe, tanto quanto ela não sabia que ele era seu filho, aceitou de bom grado e se casou com Jocasta, realizando, deste modo, a segunda parte da profecia.

Édipo e Jocasta tiveram quatro filhos e viveram em paz e com amor por 20 anos. Um incidente, entretanto, envolvendo o Oráculo Tirésias, expos a história profética. Jocasta, desesperada, se enforcou e Édipo se auto-mutilou, perfurando os próprios olhos e vivendo e morrendo na miséria e na solidão, embora tenha tido um enterro digno de um monarca, por obra e graça do Rei de Atenas, o semi-deus Teseu, do qual Édipo fora amigo por muitos anos. Édipo se auto-aplicou o castigo porque, Lei de Talião, como ficou cego à verdade por muitos anos, assim considerou, embora não tivesse como conhecê-la, optou por cegar-se de vez; olho por olho, literalmente.

Os pecados de Laio tiveram, pelos deuses olímpicos, sem remissão, penalidades posteriores, mesmo para quem nada fez, como foi o caso de Édipo, mostrando que, no Universo grego antigo, uma vez instaurado o caos, assim deduz Ferry (2009) há um tempo e ações corretivas para a vigência de nova ordem, com correções que se prolongam na cronologia da vida. A ordem, nesta concepção, não é restituída de imediato e estamos sujeitos às penalidades cabíveis pelo simples fato de sermos mortais e de estamos vivos.

Nesta segunda história, o que está em jogo são coisas como certo “destino natural” do ser humano, como se não tivéssemos domínio sobre nossas vidas, sendo comandados por algo maior que todos e que cada um de nós. Muitos de nós ainda acreditam em escrituras como se fossem, literalmente, a palavra de deus e não a palavra de homens, que falam em nome de deus. Essas pessoas não acreditam que o destino não existe como algo “natural” e pré-determinado, não acreditam que somos nós mesmos quem, individual e coletivamente, o fazemos, com nossas ações cotidianas. Além disso, a história de Édipo também aponta para o fato de que devemos ser menos cruéis conosco e não nos penalizarmos em demasia sobre consequências futuras de ações que, se hoje nos parecem erradas, na época nos pareciam corretas. Também é possível pensarmos, a partir da saga edipiana, sobre a ideia, expressa na Lei de Talião, acerca das consequências ruins de uma sociedade vingativa e que usa os famosos “dois pesos, duas medidas”, para lidar com diversas situações. Nada como ponderação. Como dizia vovó, cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém.

Catarse, outra palavra originada do grego antigo, que significa “limpeza” e “purificação pessoal”, é usada para designar o estado de libertação da alma (mente, coração, corpo) que sentimos quando, a despeito das adversidades com as quais nos deparamos na vida, conseguimos superar traumas, medos e opressões ou perturbações psíquicas. Catártico é todo fenômeno, natural ou social, que nos leva a sair de nosso eventual e momentâneo estado de letargia e mesmo de catatonismo e fazer acontecer de modo diferente, agradável e proveitoso.

Narciso

A terceira história aqui apresentada é uma das mais famosas da mitologia grega e inspirou parte das ideias do médico austríaco Sigmund Freud (1856-1939), baseando os primórdios da Psicanálise.

Narciso era filho do Deus Rio Céfiso e da Ninfa Liríope (ninfas eram fadas sem as asas tradicionais com as quais as representamos, normalmente; divindades femininas que habitavam elementos da Natureza, como lagos, florestas, rios, montanhas etc. e que simbolizavam a fertilidade); era, portanto, um semi-deus. Desde muito jovem, ele fora um belo e charmoso mancebo (rapaz). No momento de seu nascimento, o Oráculo Tirésias profetizou que ele teria vida longa, caso não contemplasse a própria beleza. Todos os espelhos lhe foram negados, mas apesar dos cuidados, Narciso cresceu arrogante e orgulhoso, dispensando todos, mulheres e homens, que lhe faziam a corte; não achava ninguém digno de seu amor. Muitas ninfas, também o assediavam, mas nem elas eram, para Narciso, dignas de com ele se casar e/ou mesmo apenas copular. Um dia, uma delas, apaixonada e revoltada com a recusa, lançou em Narciso, uma maldição: a de que ele iria se apaixonar por alguém que jamais poderia ter. Nêmesis, deusa do equilíbrio, mas também da vingança, com pena de suas amigas ninfas e contrariada com Narciso, atendeu às súplicas desta ninfa em particular.

Um dia, ao ver seu reflexo em um lago, Narciso apaixonou-se pela própria imagem, mostrando-se a personificação da vaidade, eis a mensagem que a história nos deixa. Sem poder ter a si mesmo, por óbvio, o único que considerava digno dele mesmo, Narciso permaneceu indefinidamente à beira do rio e definhou, admirando a própria imagem. Narciso teria nascido na cidade grega da Beócia – palco, também, de uma trama (que não será descrita aqui), em que os habitantes foram enganados por Ino, filha do Rei Cadmo e Harmonia e é por esta razão que, até hoje, a palavra “beócio” é sinônimo de ingênuo, tolo ou mesmo otário. Há quem atribuía essa ligação semântica, também, à história de Narciso que, por essa lógica, teria se auto-enganado. Enfim…

O fato é que a história secular de um ser auto-referenciado e que só vê a si mesmo é a mais pura essência de muitos de nós e de nossas sociedades. Este tipo de pessoa está aí, ao seu lado agora, ou na esquina, tomando uma cerveja, ou na gerência da sua empresa ou na presidência do seu país… Esse tipo de atitude é altamente nefasta porque ela faz com que não percebamos o outro como um ser que também é portador de direitos básicos, como ter a possibilidade de viver com dignidade (se alimentar, ter moradia, ter escola, amar, ser respeitado em seu direito de ser o que é ou que escolheu ser…). Além disso, o narcisismo é altamente prejudicial para a formação da auto-identidade de quem deste mal padece, fazendo-o não se perceber como um ser social e sociável, transformando-o em um, ser auto-centrado e que odeia a diversidade da imagem que não reflete a sua ou da voz que não reproduz aquilo que sente ou pensa.

Mitologias tupiniquis

Como essas três histórias mitológicas se entrecruzam e nos ajudam a entender o que estamos vivendo hoje, no mundo e no Brasil?

É possível que você esteja se fazendo, além de outros, os seguintes questionamentos abaixo, para os quais realizaremos umas tantas reflexões com o objetivo de tentar alinhar, senão respostas definitivas, seria arrogância de minha parte, ao menos alguns rudimentos de respostas para cada uma das indagações a seguir. Ligar os pontos, reais, no papel, ou fenomenológicos e existenciais, é sempre a melhor forma para vermos a figura oculta e, assim, compreendermos o que está por detrás das aparências do que nos é mostrado por quem só lucra com a ignorância e o despreparo, além do egoísmo alheio, bem como com sua ganância em mais ter, do que ser, para usar um jargão popular.

Por que a escolha da mitologia grega antiga?

Várias são as razões, desde o motivo mais corriqueiro e que leva muitos pesquisadores a realizar seus estudos, ou seja, porque gosto muito de mitologia grega.  São história belíssimas, embora trágicas e, não raro, exageradas. Também me motivou o fato de que as narrativas escolhidas (como outras) expõem, ludicamente, muito do que somos hoje, como sociedades constituídas neste século XXI. A mitologia grega antiga é, ao menos na cultura ocidental, em que nascemos e vivemos no Brasil, não apenas a primeira tentativa de explicação cosmogênica, mas a primeira tentativa de nos explicar, para nós mesmos, o porquê de sermos o que somos, como somos e de apontar, de algum modo, para onde podemos ir, ao menos do ponto de vista existencial e social.

Onde essas histórias se cruzam, se é que o fazem?

A narrativa da mitologia helênica é um portento, como dito. Ela nos faz mergulhar no mais profundo “eu coletivo”, consciente e inconsciente, material e imaterial, concreto e simbólico e sem essa imersão, a compreensão do mundo, ao menos do nosso mundo humano, tornando-se capenga e estaríamos relegados ao mais profundo obscurantismo (e não estamos?), como se ainda estivéssemos presos na caverna de Platão, vendo as sombras dos recônditos obscuros de nossas almas (psiquês) que nos cegam, se dela não escapamos. Cada uma das histórias resumidas nas partes anteriores deste artigo compõe um mosaico de idiossincrasias humanas, subjetiva e coletivamente falando. O cruzamento ora buscado acontece, pois, na medida em que as histórias apontam para maior compreensão de nossas ações e sobre formas melhores de como podemos lidar com elas.

Como essas histórias mitológicas nos ajudam a entender o “Trumpinistão” mundial, e seu caso muito particular, o “Bolsonistão”, ou seja, o nosso país atual?

Talvez não expliquem, por si mesmas, a complexidade total do mundo e do Brasil, mas explicam boa parte do que vivemos, hoje. As histórias narradas falam menos sobre fatos supostamente acontecidos; elas narram sagas fictícias, mas que dizem muito sobre como somos seres falhos. Donald Trump e sua cópia mal feita, piorada e subserviente, Jair Bolsonaro, na verdade, expuseram características de muitos norte americanos e brasileiros que estavam, até então, restritos aos guetos imundos das “deep webs” da vida, mas que emergiram com força. Esses líderes toscos e autoritários destamparam os esgotos da alma humana e deles veio com intensidade a tsunami que nos afoga até hoje. O que houve com a ascensão do nazi-fascismo pré medieval, terraplanista, corrupto e intolerante, de 2016 e 2018 para cá, do ponto de vista das percepções subjetivas e cidadãs sobre o país que desejamos e que achávamos que estávamos construindo, aponta para um mundo e para um país que precisamos, com urgência, mais do que reformar, reconstruir. E não estamos aqui a dizer que apenas, no plano político, as esquerdas têm o caminho da salvação, não acreditamos nisso. Todas as boas e honestas pessoas, de esquerda, de centro e de direita, devem se dar as mãos, metaforicamente falando, defenestrar o nazi-fascismo há pouco aludido, mandá-lo de volta para os esgotos humanos de onde nunca deveria ter saído e por essas mesmas mãos às obras para forjar um novo mundo e um novo Brasil.

A sabedoria pré-filosófica clássica pode nos ajudar a entender, ao menos em parte, o que se passa no mundo e no Brasil de hoje. Procurei estabelecer ligações entres essas histórias com o processo político em curso por aqui, neste país infelicitado pelo obscurantismo, desde 2018. Minha intenção foi a de, tal como na brincadeira de criança, ligar, com o lápis da mitologia grega antiga, alguns pontos para compor uma, de várias figuras sociais e políticas possíveis, que compõem ao menos parte deste mosaico caótico, cruel e surrealista conhecido por Brasil.

O título deste artigo exprime algumas transformações que presenciamos no Brasil, desde 2018. Bolsonaro apresentou-se como o aventureiro Jasão, viajando pelos mares revoltos do que chamou, cinicamente, de velha política, como se dela não fosse um subproduto e do que há de pior nela. Esse Jasão tupiniquim prometeu para sua Medéia, aqui representada pelo povo brasileiro, um país melhor e, não obstante falou muito do que iria fazer (e está fazendo, ou seja, está destruindo este país), traiu a mulher (deve ter sido em um daqueles apartamentos funcionais em que ele disse que pagava com dinheiro público para, nas próprias palavras do beócio, “comer gente”), enganando-a que não era corrupto, dentre outras promessas não cumpridas, como dizer que ia administrar o país para o bem geral e não apenas para dar vazão à sua guerrinha cultural tosca e autoritária. Vamos ver quando, e não se, essa Medéia irá trair o voluntarioso Jasão nacional (uma parte já começou a fazer isso; será o início da queda?).

As reflexões provocadas por essas (e outras) histórias da antiguidade ainda guiam nossos sentimentos e comportamentos e deveriam nos servir de base para a renovação de que tanto necessitamos, como a total falta de empatia pela vida alheia, expressa diariamente pela indiferença aos mais de 155 mil mortos nesta pandemia (até meados de outubro deste ano), só no Brasil e já mais de 1 milhão de mortos pelo mundo, bem o demonstra.

Como o Rei Midas, Jair “Jasão” Bolsonaro acha que tudo o que toca é ouro, embora saiba, no fundo, que sua política é genocida pela inação na saúde pública e quie sua política de destruição ambiental é deliberada e não fruto, apenas, de incompetência, embora também o seja. Esse Jair “Jasão” Bolsonaro, como Midas, transforma tudo o que toca, na verdade, vira pó, por destruído. Assim, Jair “Jasão” Bolsonaro, transformou-se em Jair “Narciso” Bolsonaro, ao apaixonar-se, inicialmente, por sua mãe, que o pariu, simbolicamente, a Lava Jato, e, com ela se casando, nomeou o já expelido juiz fascista, ilegal e antidemocrático Sergio Moro e se vendeu como restaurador da ordem universal no país, crente que seria um Zeus, opa, um Messias. A Jocasta brasileira, a Lava Jato (a qual, diga-se de passagem, e admita-se, foi um bem sucedido golpe autoritário para minar o Estado Democrático de Direito por dentro, contribuindo para esfacelar nossas instituições democráticas), há um tempinho percebeu-se, também ela, traída, e está desesperada e vendo, na verdade, o Jasão Castrense transformar-se, como dito há pouco, em um Narciso de quinta categoria, assumindo sua nova paixão autorreferenciada. Uma paixão que não vem da Harmonia (equilíbrio entre extremos), simbolicamente, filha de Afrodite e Ares, embora tenha com este deus da guerra, no tocante à paixão pela morte (alheia), forte laço parental, mas de um céu sem estrelas, tal como em um desastre.

Essa Narciso redivivo tenta, agora, a todo custo (nosso), se agarrar ao Rei Pélias, aqui representado pelo Supremo Tribunal Federal, que tem nas mãos o Velocino de Ouro da proteção jurídica (com Supremo e com tudo, não é?) e também pela Câmara Federal, que em troca de moedas de ouro (verbas públicas, cargos, perdão de dívidas de banqueiros e latifundiários grileiros, títulos da dívida pública, cujo pagamento é garantido por lei, fim do sistema previdenciário, quebra da espinha dorsal do serviço público etc.), está se propondo a proteger Jair “Narciso” Bolsonaro contra os mais de 50 pedidos de impedimento, em face de seus muitos crimes já realizados como Presidente, que é o Velocino do legislativo, enquanto dele precisar para executar seu projeto de anti-nação democrática e justa, com métodos castradores de dominação e alienação sociais. A ordem, para os abonados de sempre, tem que ser mantida para que eles permaneçam abonados. Aos súditos, cabe apenas, nesta visão escravocrata que nos governa, obedecer e pagar a conta da festa, sem dela usufruir e sem reclamar.

Outros mitos, que não da Grécia Antiga, não obstante também os gregos o tenham assumido como seus, posteriormente, como o da Fênix, ave egípcia que renascia das próprias cinzas, podem ser associados a uma ideia antípoda do Narcisismo: a do renascer do próprio caos, ideia muito apropriada para o momento mundial e brasileiro. Males psíquicos e sociais como este Narcisismo podem nos levar a um estado lastimável de catatonia que é, na concepção médica original, uma perturbação de comportamento motor, cuja causa pode ser tanto psicológica quanto neurológica, mas que, individual e socialmente, é uma metáfora representativa da inação e da omissão conformista, assumida pela maioria covarde para promover mudanças drásticas que acabam deixando tudo como sempre foi. O fato é que ficamos paralisados perante o mundo e assim permaneceremos, tanto mais quanto maior for o Narcisismo a que nos permitirmos escravizar neste “mundo capitalista das celebridades a qualquer preço”. Não podemos mais permitir que esse sistema de vida nos conduza; não podemos mais deixar que a crueldade desumana nos aprisione. Temos que libertar nossas mentes e corações dessa apoplexia existencial e social. Urgente!

O Narcisismo é, assim, uma espécie de doença da psiquê humana. Psiquê, em grego antigo, significa “alma; ego” e, atualmente, ou, já de há muito, também é uma palavra usada para expressar ideias como “mente” e “espírito”. Psiquê também aparece, na mitologia, ora como amante de Eros, mais conhecido entre nós como “Cupido” (na versão latina), o Deus do Amor, ora como espécie de personificação da alma humana, um ser em forma de borboleta e que, tendo sido, anteriormente, uma lagarta, representa a crisálida que há, ou pode haver – que tem que haver, em todos e em cada um de nós.

A palavra “desastre” tem origem no italiano antigo, sucedâneo do Latim, “disastro”, que por sua vez vem do Grego antigo e, decomposta, apresenta o prefixo “dis” (que indica separação ou negação) e “aster” (estrela). Desastre é, pois, uma noite “sem astro” ou, em outro sentido, uma “estrela ruim”. Em uma acepção única, desastre pode ser um sinônimo possível para “desgraça”. Talvez por isso, o escritor irlandês Oscar Wilde (1884-1898) dizia que dois homens podem olhar da mesma janela, porém, um pode só conseguir ver a lama da rua e o outro, consegue ver as estrelas no céu. A perspectiva do observador e sua intenção são fundamentais para ver belas estrelas ou desastres motivados por estrelas ruins, por assim as definir, (como, metaforicamente, a lama, do homem que insiste em olhar para baixo, desprezando outras formas de olhar e outros lugares para onde apontar os olhos, da cara e da alma).

Precisamos de uma grande catarse nacional que nos tire da catatonia cívica em que sempre vivemos e em que nos chafurdamos a mais não poder, com os esgotos fascistas destampados em 2018! Renasçamos, pois, como a Fênix! Renasça, Brasil, com o fim dos narcisismos e dos fascismos! Façamos brotar a nossa crisálida de cidadania, generosa e solidária, de um país não apenas belo e alegre, mas livre, fraterno e justo! Não sirvamos de linha para agulhas ordinárias: costuremos novas redes de justiça e dignidade, que durem e que acolham a todas as pessoas de bem deste país!

BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia – histórias de deuses e heróis. 34.ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006

FERRY, Luc. A sabedoria dos mitos gregos. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2009

Carlos Fernando Galvãogeógrafo, doutor em Ciências Sociais e pós doutor em Geografia Humanacfgalvao@terra.com.br