Com 74 anos e sem nada mais a temer senão a aproximação do fim, que bem pode esperar, Leonard Cohen rejeita a canonização antecipada e os crescentes tiques de inacessibilidade em que têm incorrido Bob Dylan e Tom Waits – os únicos, provavelmente, cujo prestígio e influência podem comparar-se-lhe -, provando, se dúvidas houvesse, que a lenda em que se tornou, de há pelo menos duas décadas a esta parte, não interferiu com o sentido contínuo de descoberta.
Na forma franca e calorosa como se dirige à assistência (tratando os presentes por “amigos”), Leonard Cohen transforma a esgotadíssima O2 Arena, com 22 mil espectadores, numa sala de estar lá de casa, tão intensa é a sua vontade de dirigir-se a cada um dos espectadores como se fosse o único. E se, noutros casos, desconfiaríamos sempre de elogios tão untuosos, há em Cohen um magnetismo que desarma à partida qualquer espírito crítico. Como duvidar de um septuagenário que recolhe humildemente com o chapéu os aplausos que lhe são dirigidos pela plateia em delírio?
O registo londrino da apoteótica digressão mundial realizada no ano passado, que incluiu Portugal (ler caixa), não terá diferido muito dos restantes. O que é o mesmo que dizer que houve plateias em êxtase absoluto (algo despropositado, aliás, pois o silêncio continua a ser a melhor maneira de fruir a sua música…), o desfilar de todos os seus grandes temas e um impecável sentido de espectáculo que não associaríamos de imediato a alguém que, desde o início, nunca aspirou a mais do que ser um poeta menor. O arrojo da produção, ainda que compreensível, tem o seu quê de paradoxal: mesmo com toda a parafernália sonora e um “staff” numeroso, os momentos mais convincentes do espectáculo são aqueles em que a voz de Leonard Cohen plana sozinha, provando que a perfeição dispensa acompanhamento.
Vê-lo a cantar, alquebrado e sem o garbo de outrora, o profético “The future” poderia ser um exercício penoso, se Cohen não tivesse sabido introduzir-lhe uma dimensão irónica que excede o registo original. Esta é, aliás, a súmula de toda a actuação: na impossibilidade de recriar com exactidão temas de há 30 e 40 anos, incute-lhes novas entoações (às vezes, não mais do que um comentário espirituso). O triunfo pleno do intelecto sobre a decadência.
Não custa reconhecer que a voz de Leonard Cohen está mais frágil, ainda mais sussurrante do que nos habituámos a ouvir, mas os anos de ascese forçada fizeram com que adquirisse um tom invulgarmente cristalino, em que cada sílaba pronunciada é uma seta apontada ao coração de quem o ouve. E mesmo quando os arranjos roçam perigosamente o mau gosto ou os coros soam demasiado “streisandianos”, há sempre algo – quase sempre a cargo de Cohen – que redime os temas e os salva da fogueira do kitsch…