Coringa e o semblante da margem

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

Por Eduardo Rebuá *

Coringa é produto de um tempo de brutalização capaz de reforçar a indiscernibilidade entre ordem e anomia característica do estado de exceção, encapsulamento contemporâneo do bio-necro-poder burguês e condição da política neoliberal 3.0

O real é aquilo que frustra a representação.
[…] O real é o momento em que o semblante se torna
mais real do que o real de que ele é o real.

[Alain Badiou, Em busca do real perdido]

Vinda que finda
A tinta de pintar tristeza.

[Chico César, Pétala por Pétala]

 

Joker (2019) é o filme mais belo do ano. Porque há vontade de beleza na percepção de quando o horror – pessoal ou social – se (in)visibiliza. Há mais ainda quando a portadora narrativa desta observação se materializa num humorista frustrado portador de uma síndrome que o obriga a rir, seja no lugar do stand-up, onde o ato de atacar (condutas, minorias, desvios) de cara limpa é esperado pelo público, seja sob o invólucro do clown, de onde se espera a surpresa. Chorar compulsivamente poderia ser mais aceito pela sociedade dos indivíduos. Mas não seria o consumo compulsivo, os corpos cirurgicamente moldados, a busca doentia por likes nas redes sociais formas de estarmos sempre sorrindo?

O filme de Todd Phillips estrelado por Joaquin Phoenix focaliza na condição neuropática do vilão das histórias em quadrinhos sem dissociá-la de duas dimensões constitutivas dos modos de subjetivação: o contexto e a articulação memória-trauma. Coringa é produto de um tempo de brutalização capaz de reforçar a indiscernibilidade entre ordem e anomia característica do estado de exceção, encapsulamento contemporâneo do bio-necro-poder burguês e condição da política neoliberal 3.0 desta segunda década do XXI, lastreada pelo ódio, pelo ressentimento e pela definição incessante de inimigos. Neste contexto convivem, no enredo e no protagonista, a rememoração que se vincula à coleção de traumas desde a infância, descamados na cena do Asilo Arkham, quando a elaboração de um encaixe para existir no hostil mundo, a despeito de sua transmutação em Joker ter começado antes, cai por terra.

A ausência de limite entre as projeções alucinadas de Fleck, como a amante vizinha, e o que efetivamente ocorre, tal qual sua apresentação tosca no bar, que posteriormente chega à tevê, talvez incorpore uma ressonância da indeterminação entre o jurídico e o político (o momento com a assistente social traz isso explicitamente) que define o estado de exceção, bem como a indeterminação estabelecida pelo espetáculo, que pode colocar sob os holofotes o anonimato, quase sempre estigmatizando-o, ou reforçá-lo. O espetáculo, confirmação da generalização da lógica da mercadoria em toda a sociedade, desenha, concomitantemente, que se todos somos também ninguém é, e que o solitário pode compor milhões de uns, como o slogan recente da Globo. Coringa brinca com este duplo.

Persona

O traço genial desta personagem, um borderline nascido órfão na arte gráfica dos pais Bob Kane, Bill Finger e Jerry Robinson, tem seu DNA exatamente na mistura de estruturas distintas que é capaz de operar, como a racionalidade e a loucura, a legalidade e sua quebra, a crise e a normalidade pessoal e societária, o jogo entre a morte e a existência concreta. Das convergências existentes na saga o atual Joker, graças à escolha de Joaquin Phoenix, soube se agarrar àquela que possivelmente é difícil de ser percebida fora da tela do cinema, qual seja a degradação do corpo (disforme) e do psiquismo (adoecido).

Phoenix, um esgrimista da dramaturgia eternizado em Her (2013, Spike Jonze) e The Master (2012, Paul Thomas Anderson), interpreta em três momentos perturbadores e ao mesmo tempo catárticos este processo da metamorfose do humorista decadente, mentalmente fraturado e mantido vivo por remédios. Contudo, isso ocorre em takes que exaltam o corpo enquanto casulo que se rompe tendo na dança o jazigo da apatia. Ao tratar a poesia baudelairiana como uma defesa contra a experiência do choque da modernidade Walter Benjamin comparou-o a um esgrimista, valendo-se precisamente da expressão absurda esgrima presente em Le fleurs du mal (1857).

No banheiro se dá o primeiro movimento, logo após o revide mortal contra seus agressores do metrô, etapa importante do nascimento de uma criptoidentidade após outra violência pública; o segundo é a já clássica coreografia na escadaria, autoafirmação numa estética que hibridiza sexo, êxtase e vigor; finalmente, temos a danse finale antes de sua chamada no programa de auditório onde o taxi driver Robert De Niro o aguarda, momento da consumação do desejo e da tergiversação do suicídio, tornado ato tragicômico pelo palhaço que ao executar o âncora sádico e parasita do fracasso alheio implode ele mesmo o espetáculo (originando outro?) e seu cinismo subjacente. Salvo engano esta é a única duração do filme sem sua risada estridente e incômoda. A confissão anterior “tudo o que tenho são pensamentos negativos”, naquele momento, encarna a representação sendo frustrada pelo real.

Batman

Outra sintonia acertada na trama foi simbolizar o nascimento concomitante, na mesma sequência, de Batman e Coringa, aquele no assassinato brutal dos pais, este no reconhecimento do oceano de mascarados, numa das cenas finais, a expor orgulhosamente seu semblante mais real que o próprio real, sobretudo porque garantidos na existência da máscara una de Fleck, a ostentar apenas a maquiagem borrada, tinta de pintar tristeza.

Em Poe o comportamento do transeunte – que não é um flâneur, o caminhante solitário não indiferente das grandes cidades – em relação à multidão e aos choques físicos e psíquicos é a reação. Walter Benjamin cita o riso e o “keep smiling” em Sobre alguns motivos na obra de Baudelaire (1939), ao falar do sujeito de Poe e seu amortecimento mímico do choque. Em Baudelaire o modus vivendi do citadino é a possibilidade da forja, ainda que caleidoscópica, de uma vivência do choque, explicitadora do colapso da aura.

Coringa, o palhaço fracassado e homem ferido da multidão, demitido de uma empresa fracassada de palhaços não é um flâneur. Talvez seja um jogador numa sociedade que paga para poder rir e tripudia sobre quem excede esta ação. Um jogador louco que encontra em duas das morfologias do mal em nosso tempo sua bússola: a incerteza e o apagamento do passado. Ainda Benjamin na obra citada, recuperando Émile-Auguste Chartier (Alain), vai dizer que no jogo nenhuma partida depende da anterior, eliminando posições de segurança. Contrapondo-se ao trabalho, o jogo tem sido um dos formatos da violência sob o neoliberalismo, hoje permitindo a figura palhaça do entregador de comida por aplicativo que anda de bicicleta correndo com uma bolsa térmica colorida nas costas. Ou ainda do coach que reforça a temporalidade linear para definir o futuro enquanto espaço do êxito solo. Para o filósofo alemão a imagem do jogador se tornou o complemento verídico da imagem arcaica do esgrimista, aqui o espadachim do caos nascido da culpa e do ressentimento.

Modernidade

Se para viver a modernidade é necessária uma constituição heroica, segundo Benjamin, não teríamos no anti-herói uma potencial maior permeabilidade do spleen (melancolia) como sentimento correspondente à catástrofe e aos segundos que não acabam? No inimigo de Batman, Gotham City não pode ser redimida, nem pela filantropia dos ricos tampouco pelas ações justiceiras esporádicas e que estabelecem algum nível de vínculo com as próprias forças que engendram a barbarização: a polícia (Comissário Gordon), as elites e seus bailes, a opinião pública, ponto de tangência entre Estado e sociedade civil. Não falamos aqui de uma positivação da melancolia como força política, mas de sua necessária visibilidade enquanto sintoma de uma sociedade que ridiculariza a margem a ponto de torná-la quadro de programas de tevê, ao estilo daqueles que o presidenciável Luciano Huck tem feito por aqui há bastante tempo.

Finalmente, nos parece uma falsa problemática o que tem sido debatido após a estreia do filme – definir se a personagem reforça arquétipos do terror e do fundamentalismo de vários matizes ou se traça coordenadas para o resgate da política como afeto e experiência sentida junto. É possível que a pergunta a ser feita venha justamente de Walter Benjamin em Pequena história da fotografia (1931): “não será cada canto de nossas cidades um local do crime?”

Numa conjuntura de fantasmagorias do capital em nada constrangidas na costura de fascismo e ultraliberalismo – uma certa novidade de grandes museus, invertendo Cazuza – parece-nos urgente a atenção para com territórios e sentimentos prenhes de mascarados da exceção tornada regra e da patologia transformada em tempo.

* Eduardo Rebuá é professor adjunto de Educação na Universidade Federal da Paraíba [UFPB]. Professor adjunto credenciado do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade Federal Fluminense [PPGE-UFF], na linha de Filosofia, Estética e Sociedade. Coordenador do Observatório de História, Educação e Cultura da UFPB [HECO – CNPq]. Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação [NUFIPE-UFF]. Organizador de obras sobre o materialismo histórico, o pensamento social brasileiro e a educação. Autor de “Insólito Benjamin” (Nau Editora: Rio de Janeiro, 2019), que acaba de ser publicada.