O “ars nova”

O “imobilismo” da “ars antiqua” explica-se pela insuficiência do sistema de notação, atribuído ao monge Guido (ou Guitonne) de Arezzo: todas as notas tinham o mesmo valor, a mesma duração, sem possibilidade de distinguir breves e longas.  O primeiro grande progresso da ars nova, dos séculos XII e XIV, é o sistema mensural, que já se parece com o nosso sistema de notação: permite distinguir notas longas e menos longas, breves e mais breves; permitiu maior e, enfim, infinita diversidade do movimento melódico nas diferentes vozes.  É um progresso que lembra as descobertas, naquela mesma época, da ciência matemática, pelas quais são responsáveis eruditos como Oresmius e outros grandes representantes do nominalismo, dessa última e já meio herética forma de filosofia escolástica.

A “ars nova” não é, simplesmente, o equivalente do estilo gótico na arquitetura.  Precisava-se de séculos para construir as grandes catedrais.  Quando estavam prontas (ou quando as construções foram, incompletas, abandonadas), já tinha mudado muito o estilo de pensar e o estilo de construir.  A “ars nova” já corresponde à elaboração cada vez mais sutil do pensamento filosófico e das formas góticas.  Os grandes teóricos da “ars nova”, o bispo Phillipus de Vitry e outros, elaboram com precisão matemática as regras da arte de coordenar várias vozes diferentes sem ferir as exigências do ouvido por dissonâncias mas ásperas.  São as regras do contraponto.

Eis a teoria.  Na prática, a “ars nova” influi muito a música profana, inclusive a italiana do Trecento, de interesse histórico, mas sem possibilidade de se hoje revivificada.  O grande compositor da “ars nova” é Guillaume de Machaut (c. 1310-1377), que foi dignatário eclesiático em Verdun e Reims, enfim na corte do rei Charles V da França.

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A primeira grande época da música ocidental, a da polifonia vocal, costuma ser chamada “medieval”.  Mas esse adjetivo não é exato.  Medieval é a “ars antiqua”.  Medieval é a “ars nova”.  (…) toda a música dos séculos XV e XVI é chamada, desde os começos da historiografia musical na época do romantismo, de “música antiga”, em relação à “nova”, isto é, desde o início do século XVIII.  Nessa perspectiva confundem-se a Idade Média, a Renascença e parte do Barroco.  Mas, na verdade, a Idade Média propriamente dita já não faz parte da grande época na qual predomina a polifonia vocal.

Quanto à primeira fase dessa época se costuma falar em mestres “flamengos”.  O adjetivo significa menos uma nação do que determinado espaço geográfico: de Paris a Dijon, através de Reims e Cambrai e Mons até Bruxelas, Burges e Antuérpia, quer dizer, Bélgica e o norte da França. Região na qual se falava, então, o flamengo e o francês (…)

A música de Borgonha no século XV corresponde à pintura dos Van Eyck, Roger van der Weyden, Hugo van der Goes e Memling, à poesia de Eustache Deschamps e Villon; à arquitetura “flamboyante”, último produto do espírito gótico já em decomposição.

É uma civilização caracterizada pelas requintadas formas de vida de uma corte, a da Borgonha, na qual o feudalismo já perdeu sua função política, social e militar, fornecendo apenas regras de jogo como num grande espetáculo pitoresco.  O fundo é menos requintado: a grosseria popular invade os costumes aristocráticos; na arte, ela aparece como espécie de folclore sabiamente estilizado, na poesia de Villon.  Os costumes são brutais.  Mas por esses pecadores rezam e cantam os monges e as beguinas, vozes da angústia religiosa de uma época de agonia espiritual.